domingo, 13 de maio de 2018

De Mírian Dutra ao DCM: “Serra liberava o dinheiro de FHC na Espanha”. Por Joaquim de Carvalho

Mirian no depoimento à PF em São Paulo
Mirian no depoimento à PF em São Paulo
Esta reportagem foi ao ar em abril de 2016 e está sendo republicada em homenagem à soltura de Paulo Preto, operador de, entre outros, José Serra
A jornalista Mirian Dutra prestou depoimento nesta quinta-feira, 7 de abril de 2016, à Polícia Federal, no inquérito em que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é investigado, sob a suspeita de usar uma empresa concessionária do governo federal, a Brasif, para enviar recursos ao exterior.
Fernando Henrique teve um relacionamento extraconjugal com Mirian Dutra, então repórter da TV Globo em Brasília, durante seis anos, entre 1985 e 1991. No último ano do namoro, Mirian teve um filho, Tomás, que Fernando Henrique Cardoso ajudou a sustentar, acreditando que era seu filho.
Em 2009, Fernando Henrique divulgou à imprensa que havia reconhecido Tomás como filho, num cartório em Madri. Em 2011, quando Tomás tinha de 19 para 20 anos, informou à imprensa que fez um exame de DNA e descobriu que Tomás não era seu filho biológico, mas que, assim mesmo, continuaria a tratá-lo como filho.

Em 2014, o advogado de Mirian notificou Fernando Henrique para que entregasse o exame e o documento de reconhecimento do filho. O ex-presidente não respondeu. Mesmo assim, alguns meses depois, comprou um apartamento para o filho em Barcelona, pagando 200 mil euros em dinheiro.
Este é o resumo de uma novela da vida real, que soma indícios de crime de lavagem de dinheiro com profundo drama pessoal. Estive com Mirian Dutra na Espanha, entre os dias 19 e 23 de março. Tenho entrevistas gravadas com ela, oportunidade em que contou sobre sua relação com ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Na noite de 20 de março, depois de ler no site do jornal O Estado de S. Paulo a entrevista em que o ex-namorado se refere a ela como “esta senhora” e insinua que ela mentiu, perguntei a Mirian Dutra sobre essas declarações. Disse a jornalista:
— Eu também estou esperando a solicitação da Polícia Federal para depor e contar o que realmente acontecia, porque o senhor Fernando Henrique Cardoso não pode esquecer que eu tenho todos os recibos, eu tenho os contratos… Não se iluda.
Na manhã de segunda-feira, por volta das 12 horas, horário da Espanha, o escrivão da Polícia Federal, Edílson, que trabalha em Brasília, localizou Mirian Dutra pelo celular e pediu a ela que marcasse o depoimento. Ela anotou os telefones do policial e disse que seu advogado no Brasil entraria em contato.
Mirian parecia furiosa, não pela solicitação da PF, mas pela forma como o escrivão chegou até ela. Segundo o escrivão, foi seu filho, Tomás, quem deu o número do telefone.
— Com certeza, foi aquele velhaco que deu o telefone do Tomás para a polícia, para que ele informasse o meu número – disse, em referência a Fernando Henrique Cardoso. É assim que ele age. Ele tem meu número, mas prefere não se comprometer e pede que outros façam o serviço por ele. Envolve o meu filho nesses assuntos, e isso é difícil de perdoar. Velhaco!
Algumas horas depois, o advogado, José Diogo Bastos, enviou uma mensagem pelo WhatsApp para informar que tinha marcado o depoimento para o dia 7 de abril, na Superintendência da Polícia Federal em São Paulo, onde ele mora.
Estranhamente, entretanto, no dia seguinte, o adido da Polícia Federal em Madri, Marcos Moura, também entrou em contato com Mirian Dutra, e propôs que ela depusesse na Espanha. Na conversa, o adido procurou alertar Mirian de que ela teria o assédio da imprensa. Mirian manteve a determinação de depor no Brasil, no inquérito conduzido pelo delegado João Tiago.
Mirian estava num hotel na Cerdaña e informou ao advogado que voltaria a sua casa, em Madri, depois de uma escala em Barcelona, para pegar os documentos e levar para a Polícia Federal no Brasil.
Mirian tem cópia dos contratos que assinou com a Brasif e o arquivo dos e-mails e cartas trocados com Fernando Henrique. O mais interessante é o contrato com a Brasif, cujo dono, Jonas Barcellos, tinha as concessões das lojas duty free dos aeroportos brasileiros e de emissoras de televisão.
O objeto do contrato é a pesquisa que ela deveria realizar para lojas de aeroportos na Europa. Sua obrigação era enviar relatórios à empresa.
— Nunca enviei relatório nenhum. Esse contrato era de mentirinha. Foi uma maneira que o Fernando Henrique Cardoso arrumou de enviar dinheiro para o Tomás.
O contrato, assinado no final do governo de Fernando Henrique Cardoso, foi encaminhado a ela através de seu cunhado, Fernando Lemos, que era lobista em Brasília e amigo do então presidente da república, para quem trabalhou durante a eleição, em 1994, e a reeleição, em 1998.
Fernando Lemos já faleceu, e tinha uma proximidade com Fernando Henrique Cardoso que era conhecida em Brasília. O empresário Pedro Paulo de Souza, dono de uma das maiores construtoras do Brasil na década de 90, a Encol, conta no livro publicado em 2010 (e nunca contestado) que se reuniu com Fernando Henrique Cardoso durante a campanha de 1994, num jantar no dia 23 de julho, no restaurante La Vecchia Cucina (hotel Bonaparte) em que o então candidato estava acompanhado de Fernando Lemos, apresentado como assessor.
Pedro Paulo havia doado 200 mil reais (1,4 milhão em valores corrigidos pelo IGP-M) para a campanha, e Fernando Henrique quis agradecer. Durante a conversa, insinuou que talvez precisasse de mais alguma ajuda para enfrentar Lula na eleição.
De fato, segundo Pedro Paulo, precisou, e quem pediu foi Fernando Lemos. A campanha precisava trazer o especialista em marketing eleitoral Jesus Carlos Pedregal, “o Bruxo”, que é espanhol e morava em Nova York, mas queria que a Encol assumisse a contratação.
— Fernando Lemos explicou que precisavam de uma empresa que assumisse a iniciativa de trazer esse profissional para o Brasil. A Encol serviria para esconder o verdadeiro trabalho do estrategista com Fernando Henrique – escreveu Pedro Paulo.
A Encol aceitou e, mais tarde, em 1999, quando a empresa quebrou e Pedro Paulo foi preso, Fernando Henrique mandou um intermediário pedir ao empresário que omitisse a doação em seu depoimento à CPI do Sistema Financeiro. É Pedro Paulo de Souza quem narra:
— No caminho que levava à sala onde aconteceria a CPI, inesperadamente surgiu à minha frente o senador José Roberto Arruda, que se apresentou aos policiais que me acompanhavam, dizendo que seria ele o senador a presidir a comissão naquele dia. Arruda, nesse período, era o representante do governo no Senado Federal e vice-presidente da CPI. Ele foi o político escolhido para me levar um recado do Palácio do Planalto. Sussurrou-me ao pé do ouvido:
“Dr. Pedro Paulo, o presidente Fernando Henrique mandou avisá-lo para que o senhor não mencione a doação feita à campanha em julho de 1994.”
— Sem entender o porquê daquele recado, perguntei-lhe surpreso: Por que não?
“Essa é uma ordem que veio do Palácio do Planalto e o presidente espera que ela seja cumprida!”
Pedro Paulo disse que se sentiu coagido, mas obedeceu e, questionado pela oposição, negou que a empresa tivesse qualquer envolvimento com o PSDB, o partido do presidente.
Fernando Lemos, senador José Roberto Arruda… Mirian Dutra diz que Fernando Henrique Cardoso sempre usa alguém para atingir seus propósitos.
“Ele não é de resolver as coisas diretamente. Hoje, quando quer me atingir, usa meu filho ou planta alguma notícia através de amigos que têm na imprensa.”
Uma das pessoas que ajudavam Fernando Henrique Cardoso a resolver problema de Mirian Dutra foi o senador José Serra. “Ele era o contato de Mirian com o Fernando Henrique Cardoso”, contou a jornalista catalã Carme Polo, ex-funcionária da Unesco, uma das melhores amigas de Mirian Dutra na Espanha.
Entre o final de 1996 e início de 1997, quando tentou voltar ao Brasil e foi desestimulada pela Globo e por políticos, Mirian conseguiu um posto na cidade de Barcelona, onde comprou um apartamento, no bairro Sarrià Sant Gervasi.
Mas o imóvel precisava de reforma e, segundo Mirian Dutra,  Fernando Henrique Cardoso, então presidente, mandou fazer a obra. O dinheiro, no entanto, era liberado por José Serra e por Gregório Preciado, espanhol radicado no Brasil que é casado com uma prima do senador e já foi sócio dele.
Há uma terceira pessoa que intermediava os repasses, “operador deles”, que mora na Espanha, cujo nome Mirian preferiu manter em sigilo. Mirian disse que Serra foi em pessoa verificar a obra no apartamento dela.
O apartamento de Mirian fica no 1º andar deste prédio em Barcelona: "Serra ajudou na reforma"
O apartamento de Mirian fica no 1º andar deste prédio em Barcelona: Serra ajudou na reforma, segundo ela

“Achei estranho, mas acho que é aquela coisa do Serra, ele quer ver para depois contar para os outros e para mostrar que sabe das coisas. Ele quer imitar o Fernando Henrique em tudo. Os dois são amigos, mas têm uma disputa de vaidade. Pode apostar que, se houver impeachment no Brasil, ele vai querer fazer a mesma coisa que o Fernando Henrique fez no governo Itamar: ser o ministro forte e depois se candidatar a presidente. Ele copia o Fernando Henrique”, contou Mirian.
A jornalista lembra que, nessa visita, Serra quis comprar remédio para emagrecimento para dar de presente a Sérgio Motta, ministro das Comunicações (já falecido). O medicamento, Xenical, ainda não tinha sido liberado no Brasil e ele pediu para irem a Andorra, a 200 quilômetros de Barcelona, uma região onde o remédio podia ser encontrado. “Imagina eu e o Serra, de farmácia em farmácia em Andorra, procurando Xenical para o Serjão. Isso aconteceu. Foi hilário”, disse.
Serra era amigo de sua irmã, Margrit, hoje funcionária de seu gabinete no Senado, e a relação entre ele e Mirian era amistosa. Mas, com Gregório Preciado e o espanhol anônimo (por enquanto), o relacionamento era formal: repasse de dinheiro para quitação de despesa com a reforma do apartamento.
Manolo, o porteiro do edifício onde Mirian morou (o apartamento, hoje alugado, pertence a ela), lembra que a reforma foi grande e demorou alguns meses. “Deve ter custado muito”, disse ele, deixando ver as falhas na dentição inferior.
No mesmo dia em que a Polícia Federal localizou Mirian, o jornalista Luiz Carlos Azenha (site Viomundo) também lhe enviou uma mensagem. Ele queria saber se Mirian teve conta conjunta com Fernando Henrique Cardoso no Banco Espírito Santo (português). Mirian respondeu que não, mas ficou intrigada.
“Eu não tive conta conjunta com ele, mas não sei se o Fernando Henrique teve conta conjunta com o Tomás ou com o Fernando Lemos (o cunhado lobista)”, disse. Mirian disse que, numa das vezes em que conversou com o ex-namorado, já fora da presidência, ele disse que talvez criasse uma fundação na Europa para fazer repasses a Tomás. “Não sei se criou, mas tinha planos”, afirmou.
Quando Mirian Dutra chegou hoje à Polícia Federal, havia jornalistas à sua espera, mas ela não deu entrevista. Sua intenção era não dizer nada à imprensa de plantão na Superintendência, mas isso não significa que ela voltará à Espanha sem se manifestar. Seu advogado deve divulgar uma nota.
É certo que Mirian disse à Polícia Federal que não recebeu dinheiro de Fernando Henrique Cardoso através da Brasif. O recuo em relação ao que ela disse em entrevista gravada pode ter relação com a estratégia de defesa.
Ao dizer que assinou contrato com a Brasif, ela poderia ser acusada de violar o contrato que mantinha à época com a TV Globo, que exigia exclusividade. Mas pode ser também resultado da pressão que tem recebido, a começar filho, Tomás, que se solidarizou com Fernando Henrique Cardoso, depois das entrevistas.
Quando eu estava na Espanha, a senadora Gleisi Hoffmann, do PT, a procurou por telefone, convidando-a, em nome da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, para falar aos senadores.
Na visão de Gleisi, Mirian foi vítima de uma situação abuso de poder, tendo que silenciar diante de um esquema poderoso, que envolvia a Presidência da República e a maior rede de televisão do Brasil.
Nas conversas que presenciei com seus amigos em Barcelona, Mirian disse que uma das razões que a levaram a abrir seu baú de memórias é, primeiramente, a necessidade de contar sua história, contestando “versões mentirosas” que correm livremente, inclusive a de que o pai de seu filho seria Jorge Murad, marido da ex-governadora Roseana Sarney, “uma história sem pé nem cabeça e vou processar quem inventou isso.”
Mas Mirian não podia dar entrevista se estivesse sob contrato da Globo. A emissora a manteve na folha de pagamento durante muitos anos, mesmo não aproveitando seu trabalho. Quando a emissora comunicou que não renovaria seu contrato, em outubro do ano passado, Mirian se sentiu livre para falar.
A relação dela com a emissora tinha uma cláusula implícita: ela ficava calada e a Globo pagava seu salário. É uma relação que lhe garantiu o sustento – dela e dos filhos –, mas não lhe deu alegria profissional.
“Mirian não tinha uma relação de correspondente com a Globo. Ela disse que queria voltar ao Brasil, mas não podia. Não era uma mulher feliz”, conta o jornalista Ferran Matínez Morata, seu amigo, alto funcionário da TV3, uma emissora da Cataluña.
No Senado, Mirian teria uma tribuna para denunciar o que pode ser entendido como uma situação opressiva. Diante do convite de Gleisi Hoffmann, Mirian consultou o advogado e ele a desaconselhou. “É fria”, escreveu José Diogo Bastos.
Mirian comunicou à senadora a recusa ao convite e, no depoimento à Polícia Federal, mudou pelo menos um ponto de sua história.



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